SBBNews ENTREVISTA: Eliana Amaral fala sobre as organizações internacionais relacionadas à segurança nuclear e divulgação científica

Eliana-Amaral
Prof. E. Amaral

A Prof. Eliana Corrêa da Silva Amaral possui graduação em Física pela Universidade de Lisboa, mestrado e doutorado em Ciências Biológicas, pelo Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Foi pesquisadora da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) desde 1979, Diretora do Instituto de Radioproteção e Dosimetria (IRD/CNEN), Rio de Janeiro (1994-2003) e Diretora da Divisão de Radiação, Rejeitos e Transporte do Departamento de Segurança Nuclear da Agência Internacional de Energia Atômica, Viena, Áustria (2005-2010). Atualmente é consultora na área de remediação ambiental.
SBBNews: Como são escolhidos os membros das organizações internacionais, a exemplo da International Atomic Energy Agency (www.iaea.org), International Commission on Radiological Protection (www.icrp.org) e United Nations Scientific Committee on Efects of Atomic Radiation (www.unscear.org)? E como funcionam? Quais os recursos humanos e materiais e de onde provém?
Prof. Eliana: As organizações internacionais relacionadas ao uso da tecnologia nuclear podem ser governamentais ou não governamentais. A origem dos recursos humanos e financeiros varia, não só entre estes dois grandes grupos, como dentro de cada um.
A IAEA foi criada em 1957 como a organização das Nações Unidas de “Átomos para a Paz” com a missão de promover o uso pacífico e seguro da tecnologia nuclear, desde seus diferentes usos nas áreas médica, industrial, agrícola até produção de energia elétrica. Constitui-se de departamentos com diferentes objetivos de promoção da tecnologia nuclear, segurança radiológica e nuclear, controle físico e não proliferação, sendo a única organização das Nações Unidas que tem especificamente, em seu estatuto, o papel de desenvolver normas internacionais de segurança no uso da tecnologia nuclear. Os funcionários da IAEA são selecionados por concurso. Qualquer um pode concorrer através do site da IAEA. Alguns currículos são selecionados e, posteriormente, uma lista tríplice elaborada por uma banca examinadora é apresentada ao Diretor da área ou ao Diretor geral, dependendo do nível da função a exercer. Embora pertença ao Sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), tem um orçamento próprio para o qual todos os seus Estados Membros contribuem diretamente. Os cargos de Direção assim como a execução orçamentária são aprovados pela Junta de Governadores; finalmente, a execução orçamentária é aprovada pela Conferência Geral (composta por todos os Estados Membros). O mesmo ocorre com outras Organizações da ONU, como com a Organização Mundial de Saúde (WHO), e com a Organização Internacional de Trabalho (ILO).
UNSCEAR é um Comitê Científico da ONU e não uma organização. Foi criado em 1955, inicialmente, para atender à preocupação sobre os impactos dos testes de bombas nucleares a céu aberto. Funciona com orçamento da ONU e não tem nenhum objetivo de estabelecer políticas, nem de assessorar os países membros. O seu objetivo é avaliar os níveis globais de dose em razão da radiação natural e do uso da tecnologia nuclear e estimar os seus efeitos; fornece a base científica para a proteção radiológica. O seu relatório é discutido durante as sessões anuais por pesquisadores indicados por 27 países membros, até sua aprovação. Os pesquisadores participantes são indicados pelos países membros com base na sua experiência científica na área. Contudo, faz parte do processo, a discussão prévia do relatório com pesquisadores relevantes de cada país membro. O orçamento do UNSCEAR é administrado pelo seu Secretário, ligado administrativamente ao Diretor Executivo do UNEP (Programa das Nações Unidas para Meio Ambiente). A IAEA participa como ouvinte das sessões de discussão e aprovação do relatório, assim como outras organizações de interesse.
A ICRP é uma organização não governamental, criada em 1928, com o objetivo de evitar os efeitos malignos da exposição à radiação ionizante e proteção do meio ambiente. Sobrevive com doações (70% de governos e instituições de pesquisa) e da venda de suas publicações; as suas finanças são disponíveis online. Os seus membros são convidados com base na sua experiência científica nas diferentes áreas de interesse e não são pagos pela sua participação. Pela sua característica e funcionamento, não é influenciada por grupos externos. A ICRP é composta por vários comitês científicos em diferentes áreas, por exemplo, proposição de modelos de cálculo de dose. As suas recomendações são de extrema importância, pois são a base comum universal de proteção radiológica, levando em consideração os dados de efeitos à saúde estimados pelo UNSCEAR. A IAEA participa como ouvinte das discussões da ICRP, assim como outras organizações da ONU, como a WHO.
SBBNews: Qual a interação entre as diferentes instituições no desenvolvimento de normas de segurança radiológica? Existe muita discussão sobre o caráter de parcialidade dessas organizações em relação ao papel de promotor das aplicações da energia nuclear. Quais as interfaces existentes entre essas organizações e a sociedade?
Prof. Eliana: O processo de desenvolvimento de normas internacionais de segurança da IAEA é estruturado e bastante transparente; as normas são aprovadas em Comitês com representantes das autoridades regulatórias de cada país, que queira participar e que cubra os custos de participação. Contudo, no meio do processo, todos os países membros recebem, para comentários, as normas em desenvolvimento. Uma vez aprovados nestes comitês, os requisitos (o mais elevado nível de normas) são aprovados na Junta de Governadores e, finalmente, na Conferência Geral. Esse processo é de, aproximadamente, 3 anos, porque os documentos fazem idas e vindas aos países participantes nos comitês, para comentários e sugestões, permitindo ampla discussão. Existe, também, a preocupação de se identificarem interfaces entre as diferentes áreas de segurança e com outras instituições afins. Por exemplo, o comitê que elaborou o documento básico de proteção radiológica (Basic Safety Standards-BSS), teve participação da WHO, ILO, Organização para Agricultura e Alimentação, (FAO), Programa das Nações Unidas para Meio Ambiente (UNEP), Agência de Energia Nuclear (NEA/OCDE), Comissão Europeia (EC/Euratom) e da Organização Pan Americana de Saúde (PAHO). A IAEA busca a harmonização e coerência entre as várias normas internacionais. Esse documento só terá valor após a sua aprovação pelas Assembleias Gerais de cada Organização pertinente. O BSS levou mais de 5 anos até sua aprovação. Algumas outras organizações não governamentais de relevância participam como ouvintes com direito a fazer perguntas e prestar informações, como ICRP, World Nuclear Association (WNA), Associação Internacional de Proteção Radiológica (IRPA).
Eu diria que todas estas organizações internacionais e nacionais governamentais, não governamentais, assim como associações profissionais têm um papel relevante no desenvolvimento das normas internacionais de proteção radiológica. Umas com papel normativo, outras de pesquisa e desenvolvimento, de treinamento e divulgação da informação. Contudo, a IAEA junto com a ICRP e o UNSCEAR têm o papel fundamental, porque o UNSCEAR dá os valores globais de dose por prática e o risco de efeitos da radiação ionizante, a ICRP formula a política e filosofia de proteção radiológica e formas de cálculo de dose e, finalmente, tudo isto é considerado pela IAEA no desenvolvimento de suas normas, em consonância com as Autoridades Regulatórias dos países membros e demais organizações internacionais governamentais de relevância para a segurança. Cabe ressaltar que a IAEA pode não considerar alguma recomendação da ICRP se, por consenso, assim achar mais adequado. É bom lembrar que a ICRP é formada por especialistas convidados, na maioria cientistas e nem todos os países estão representados. A IAEA tem a representatividade das Autoridades Regulatórias dos diferentes países membros, que contribuem com a sua experiência prática de fiscalizar. Então, pode ocorrer de haver consenso sobre adotar uma política ou padrão de segurança mais adequado do que o recomendado pela ICRP. Daí a importância da presença da ICRP como ouvinte durante as discussões do comitê específico.
Não existe parcialidade entre as áreas de segurança e de promoção do uso da energia nuclear. O que existe é um objetivo comum: promover o uso da tecnologia nuclear de forma segura e pacífica. Dentro da IAEA existe este espírito em todas as áreas e existe independência entre as áreas. O processo acima já é um reflexo do interesse e esforço em levar em consideração todas as organizações pertinentes ao assunto para disponibilizar normas de consenso em segurança.
SBBNews: Como os achados das pesquisas científicas e modificações tecnológicas podem transformar o controle regulatório? Como ocorre a transmissão desse conhecimento? O tempo decorrido entre a comunicação do pesquisador à comunidade científica através de publicações e a apropriação pela sociedade é satisfatório?
Prof. Eliana: Os achados científicos e tecnológicos chegam facilmente a estas organizações internacionais. Não só pelo seu processo de atuação e composição, como pelo fato que as mesmas organizam, a maioria das vezes em conjunto, conferências internacionais de grande porte. O UNSCEAR recebe os achados científicos por meio dos governos membros do comitê. Além disso, os seus integrantes devem ser pesquisadores atualizados nos assuntos. A ICRP funciona com comitês técnicos e grupos de trabalho constituídos, principalmente, por pesquisadores e especialistas. As organizações governamentais, como IAEA, WHO, ILO, EC conduzem reuniões técnicas, workshops, conferências e congressos onde são apresentados e discutidos os achados científicos e estado da arte tecnológico, e discutidas as necessidades de melhorias nos procedimentos e normas de segurança ou, até, de novos procedimentos e normas. Além disso, as delegações de cada país levam a essas organizações, por meio dos canais competentes, as informações específicas e necessidades do seu país. Tudo isso é considerado quando da tomada de decisão para melhorar ou mudar alguma norma de segurança. Contudo, qualquer decisão deve levar em conta o eminente risco e o custo da mudança. As normas não podem estar em constante mudança a qualquer novidade científica ou tecnológica.
SBBNews: Outra crítica feita às organizações de controle das aplicações nucleares é que os riscos de exposição humana às radiações são sempre minimizados, em especial em casos de acidentes. São poucos os debates sobre as aplicações nucleares no Brasil?
Prof. Eliana: As organizações que controlam não minimizam os riscos. O problema está em que grupos, que desconhecem a Ciência e o conceito por trás do risco radiológico e sua aplicação, o utilizam de forma errada, maximizando o impacto de tecnologias e acidentes. O risco radiológico quantifica a probabilidade de indução de um câncer fatal pela exposição à radiação ionizante. A relação entre a dose de radiação e o efeito à saúde (morte por câncer) é, ainda, desconhecida para baixas doses (< 100mSv). Muito difícil observar incrementos de morte por câncer em uma população exposta à radiação ionizante. Não existe evidência da existência de um patamar de dose para estes efeitos probabilísticos. Isto é a ciência; e o UNSCEAR interpreta os dados científicos disponíveis na tentativa de obter o valor de risco à saúde. Contudo, na prática, há a necessidade de se controlar o risco para baixas doses, faixa de funcionamento da tecnologia nuclear, para ser utilizada de forma segura. Era necessário dispor-se de um modelo que assegurasse o princípio da precaução em proteção radiológica. Assim, a ICRP resolveu recomendar a utilização do modelo LNT (“linear non thereshold”), em que considera que qualquer valor de dose produz, numa relação linear, um efeito (câncer fatal), extrapolando dos resultados de altas doses. Esta abordagem, amplamente aceita, foi concebida para ser utilizada no cálculo do risco individual no planejamento do uso de tecnologias nucleares. Jamais para calcular o número de mortes esperadas em uma população exposta, durante o uso da tecnologia ou após um acidente, nem retrospectiva nem prospectivamente.
SBBNews: Em Ciência e tecnologias nucleares, as informações são, geralmente, fornecidas em linguagem para especialistas e inacessíveis ao grande público. As iniciativas para divulgação científica apoiadas pelos organismos internacionais são internalizadas pelos países?
Prof. Eliana: Qualquer uma das organizações citadas disponibiliza online as suas atividades, relatórios, normas e tem uma área de perguntas e respostas. Informações são disponibilizadas nas redes sociais, sem precisar acessar o site da instituição. Os avanços na tecnologia de comunicação facilitaram a troca de informações. Contudo, a participação direta da sociedade tem de ser feita de forma organizada e por meio de representações. Por exemplo, a IRPA, uma associação dos profissionais de proteção radiológica (estudantes, pesquisadores, reguladores, operadores etc.) tem um canal direto para fluxo de informações e interação no desenvolvimento das normas internacionais de segurança radiológica. Cabe mencionar aqui, também, o site de proteção radiológica de pacientes, desenvolvido pela IAEA, que pode ser acessado pelo Google (www.rpop.iaea.org). Este site disponibiliza informações e atualizações de interesse para os profissionais da área médica e para pacientes e público em geral, em linguagem acessível e permitindo perguntas e respostas. A IAEA, durante a Conferência Geral, oferece vários eventos para discussão de temas de interesse da sociedade. Basta inscrever-se para participar. Mas, evidentemente, como em qualquer área, o processo de interação com a sociedade pode melhorar. No entanto, um grave problema é que a parte da sociedade organizada contrária à tecnologia nuclear, tenta disseminar uma imagem de pouca credibilidade das organizações aqui citadas. O mesmo ocorrendo, no nível nacional, com as Autoridades Regulatórias. Isto dificulta demais a assimilação de informações pela sociedade em geral.
No Brasil, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e seus institutos de pesquisas estão abertos a informar e esclarecer dúvidas. O objetivo da CNEN é fomentar e controlar o uso seguro da tecnologia nuclear, por meio de atividades de regulamentação e fiscalização, pesquisa e desenvolvimento, e treinamento. Deveria, sim, ser ouvida com a credibilidade que merece. Contudo, as indicações políticas para cargos de gestão deste tipo de Instituição pública, não asseguram a continuidade dos programas e não fortalecem a sua credibilidade. Mas as associações de profissionais e sociedades científicas, relacionadas com a utilização da energia nuclear e seus efeitos à saúde e ao meio ambiente, podem organizar debates informativos, junto com a CNEN e, até, com o Ministério da Saúde. Parece-me que a área de produção de energia elétrica está mais preparada para falar com o público. Contudo, são pouco visíveis para a sociedade os benefícios de aplicação da tecnologia nuclear na indústria e na área médica. Há que organizar painéis com linguagem acessível à sociedade, com enfoque de informar adequadamente e seria interessante conseguir a colaboração da mídia.

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